"É possível ser abolicionista penal no Brasil de Bolsonaro?"

Por Débora Pastana

Texto de apresentação por: Barbara Spini

Uberlândia, 21 de Outubro de 2022. Na mesa de palestras do auditório universitário, ao lado do professor Gustavo Marin, das discentes Yasmin Nunes e Renata Sulmoneti, e diante de uma plateia ávida, uma voz feminina impera. Ela discorre com urgência sobre as inquietações e incoerências de nossos tempos, sobre opressões e lutas coletivas, sobre um significado humano e pessoal do Direito. É a manhã de uma sexta-feira chuvosa que carrega estranha tensão; uma vez que falta pouco mais de uma semana para uma das eleições presidenciais mais acirradas e decisivas da história brasileira. O país está dividido e tratar de temas políticos de maneira crítica nunca pareceu tão subversivo e perigoso desde a redemocratização. Foi este preciso momento, de suspensão das certezas e de expectativa aflorada, que abrigou e trouxe especial significado ao encerramento da XXVII Jornada Jurídica, um congresso organizado pelos estudantes da Faculdade de Direito Jacy de Assis, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - este ano sobre o tema: "Direito: caminho ou obstáculo para a transformação social?" -, com a fala da professora do Instituto de Ciências Sociais (INCIS), jurista e Doutora em Sociologia, Débora Pastana. 

É possível ser abolicionista penal no Brasil de Bolsonaro?

Abaixo, a resposta da professora Débora Pastana, realizada durante sua palestra na XXVII Jornada Jurídica UFU, à questão:

"Eu assisti Louk Hulsman, que é o abolicionista penal que depois influenciou muitos outros – aqui no Brasil temos Edson Passetti, da PUC de São Paulo que eu gosto muito, também –,  no meu primeiro ano de faculdade. Era um auditório enorme, tinha gente pendurada na janela, não tinha um espacinho no corredor, era uma coisa louca. Foi o Sérgio Salomão que levou ele lá e que fazia tradução simultânea para Hulsman. E eu olho para o abolicionismo penal como uma utopia que, contudo, move nossa reflexão, que não é ingênua. Também gosto de pensar que podemos ter o fim do Direito Penal - como ele é hoje, principalmente -, sem que isso signifique o fim da responsabilização. O Direito pode, sim, nos responsabilizar sem que isso signifique nos punir da forma seletiva, desumana, ilegal, inconstitucional, cruel e perversa como ele nos pune. Eu quero o fim deste direito penal, mesmo.

 

Por outro lado, como utopia, eu entendo perfeitamente a dificuldade de imaginarmos uma sociedade harmoniosa, capaz de equacionar todos os conflitos possíveis. Aí é só mesmo o meme da “gatinha comunista”, que representa quem vai propor vislumbrar isso como um horizonte idílico - em que eu realmente gostaria de viver e estar, mas que sei que não é possível. Então eu penso, sim, que é possível um abolicionismo penal, mesmo no país de Jair Bolsonaro – no país em que ele existe, porque o país é meu, ele só existe nele [risos] – e é isso que faz com que pensemos num evento como este, magnífico: a busca por abolir esse Direito Penal seletivo e perverso, extremamente racista e extremamente aniquilador. 

Da esq. para a dir.: Renata Sulmoneti, prof. Gustavo Marin, prof. Débora Pastana e Yasmin Nunes, durante a última palestra da XXVII Jornada Jurídica UFU.

 E volto a dizer de um exemplo que eu uso em sala de aula, que foi o Sérgio Salomão Shecaira que me deu (foi ali que ele me pegou, numa aula de Direito Penal, na qual eu decidi deixar tudo de lado, então fiz o resto da faculdade e me tornei professora de Sociologia): ele falou “gente, peguem lá o Código Penal e comparem ‘Redução a Condição Análoga à de escravo’[1] e ‘extorsão mediante sequestro’[2]”, nos dois casos você está envolvendo dois bens jurídicos, a liberdade e o patrimônio, correto?

Assim, reduzir alguém à condição análoga a de escravo, gera pena mínima de 3 anos e a máxima talvez não chegue a 10. Lembrando do recente caso de Madalena (aqui perto, na cidade de Patos de Minas), que foi submetida à condição análoga a de escrava de um professor (do curso de Direito, inclusive), por anos! Por anos, décadas, Madalena foi escrava do professor! Agora, quando olhamos para um caso de extorsão mediante sequestro – uma batidinha de caixa eletrônico de meia-hora, por exemplo, na qual você sequestra (por restringir a liberdade dos envolvidos), e pega o patrimônio –, qual a pena? Pode chegar a mais de 20 anos, a depender das qualificadoras. É disso que estou falando: essas leis não são feitas para serem aplicadas igualmente."



[1] Art. 149 do Código Penal Brasileiro.

[2] Como consta no Art. 159 do Código Penal Brasileiro: “Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate”.