"E agora, mané?"

Por Vitoria de Borba Menezes e Débora Pereira Barbosa.

E agora, mané?

E agora, mané?


A festa acabou,


a luz apagou,


o povo sumiu,


a noite esfriou,


e agora, mané?


e agora, você?


você que é sem nome,


que zomba dos outros,


você que faz versos,


que ama, protesta?


e agora, mané?


Está sem mulher,


está sem discurso,


está sem carinho,


já não pode beber,


já não pode fumar,


cuspir já não pode,


a noite esfriou,


o dia não veio,


o bonde não veio,


o riso não veio,


não veio a utopia


e tudo acabou


e tudo fugiu


e tudo mofou,


e agora, mané?


[1]


Quando Drummond escreveu: “Não serei poeta de um mundo caduco”, certamente, não imaginava que essa "caduquice" permaneceria por muitos e muitos anos. Cremos, também, que pensava que os horrores cessariam quando as guerras findassem. Tenho apenas duas mãos, Drummond, e o sentimento do mundo.


8 de janeiro de 2023. Um domingo normal, até receber a ligação de minha mãe comentando sobre a invasão. Admito que não tinha noção da relevância do evento e de como mudaria, ainda mais, os rumos da história política do país.


“Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. [2]


Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinham obras de arte rasgadas, tinham obras de arte rasgadas no meio do caminho.


Assisti, ainda tentando negar tamanha caduquice, às cenas que chocaram o final de semana dos brasileiros - ou que deveriam ter chocado – as quais mais pareciam uma tentativa de se reproduzir a invasão do Capitólio, no outro hemisfério, "à la brasileira" (ou deveria dizer, "à la mané"?).


E, a todo instante, tentava compreender: como deixamos (se permitiu?) que surgissem tantos "josés" presos à utopia de um golpe? Ou pior, como deixamos (se permitiu?) que surgissem tantos manés de prontidão para tentar justificá-la?


3 de outubro. Instabilidade. 


30 de outubro. Derrota oficial. 


31 de outubro. Fuga. Acampamentos. Negação da posse. Negação da faixa. 


1 de janeiro. Uma posse histórica. É o povo retomando o que lhe foi negado. 


8 de janeiro. Invasão. Destruição. Repressão? E agora, mané? 


O gigante acordou? Ou melhor, o gigante um dia existiu? Estamos em uma partida de plantas versus zumbis?


Invocaram o artigo 142 da CRFB sem a mínima noção de seu teor, comprovando que não respeitam a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação. Não pensaram, em momento algum, no artigo 34 do livro sagrado nacional, mas se dizem conscientes dos seus direitos, principalmente, ao chamarem a turma dos direitos humanos para os ajudar na cadeia. Afinal, agora precisamos falar sobre os direitos dos presos. 


Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, da vossa alta clemência me despido. [3] 


Somos cidadãos de bem. Precisamos, também, falar sobre ressocialização. Pois, nessa altura do campeonato, bandido bom não é mais bandido morto, contradizendo o próprio lema criado por eles. Não nos esqueçamos da importância de a família ter notícias do processo. E, claro, precisamos falar sobre a situação dos presídios e sobre a lotação. Mas, logicamente, precisamos falar da situação dos cidadãos de bem! Onde já se viu sair da prisão e vender artesanato? Trabalhar como motorista em aplicativos, então, nem pensar! Mané, a vida é pra valer. Salve-se quem puder! 


Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, dessa vez com interesse pela resposta, pobre e terrível, que lhe deres: São terroristas?


Juridicamente, o termo “terrorista” não pode ser utilizado para nomear os atores do fatídico 8 de janeiro, já que, conforme a Lei 13.260 de 2016 [4] , o Terrorismo abrange atos orientados por xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião. Porém, como boas defensoras da última flor do Lácio, lembramos que o termo terrorista é usado para designar aquele que provoca ato de terror nas pessoas através do uso da violência psicológica ou física. E, o 8 de janeiro foi um grande terror físico e psicológico? Para além, é lógico, de institucional e cultural, o que se teve foi um enorme terror sombreando a Praça dos Três Poderes. No entanto, por que tanta negação em assumir a nudez da verdade que, para a tristeza de Eça, parece eternamente sob o diáfano manto da fantasia?


Creio que teria sido melhor se o 8 de janeiro não tivesse tido filhos para que não transmitisse a nenhuma criatura o legado da miséria da retórica do ódio e do analfabetismo ideológico que permeia esse falso profeta e seus seguidores. Mas, se filhos houve, quer dizer que pais vieram, e, se hoje as águas de uma enchente de caos descem a serra da nossa frágil democracia, é porque, há muito, sobre ela começou a chover a insegurança.


Mané culpava o comunismo que culpava “Xandão” que não culpava ninguém. 


Profeta foi para os Estados Unidos, mané para o culto, 


Guru morreu de desastre, Pastora ficou para tia, 


O cidadão de bem suicidou-se e o povo casou com a democracia que não tinha entrado na história. 




[1] Drummond de Andrade, C. (1990). E agora, José? Em Poesias Completas (pp. 56-57). Editora Literária 

[2] Drummond de Andrade, C. (1990). No meio do caminho. Em Poesias Escolhidas (pp. 34-35). Editora Literária 

[3] Matos, G. de. (Ano). Pequei, Senhor.... Em Antologia de Poemas. ,LP&M Editores, 1996, RS 

[4] Presidência da República. (2016). Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Recuperado de https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13260.htm