Por Fernando Augusto Onofre de Souza
Membro do núcleo científico do projeto Livre
No plano atual da realidade brasileira, é comum o destaque do crime como sendo o maior problema social, não só considerando a taxa de consumação do chamado “fato típico”, mas também com base na reação das instituições a tal fato e à escassez de meios sólidos e fundamentados para combater a reincidência. A situação vivida no cárcere é propriamente assumida pelo Supremo Tribunal Federal como inconstitucional por violar a dignidade humana; a violência policial continua como tema de diversas notícias e, a perseguição ocultada e dificilmente comprovada juridicamente toma conta dos mais diversos casos de ação institucional. Tais questões geram a necessidade de medidas urgentes para combater o sistema criminal brasileiro como um todo, tendo em vista a falha clara do Estado em manter tal ordem de forma socialmente isonômica.
"Em 2023, uma decisão em caráter liminar expedida pela 8ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo determinou que todos os policiais militares do estado devem utilizar câmeras corporais nos uniformes durante o trabalho e que as mantenham ligadas initerruptamente. As viaturas também devem estar equipadas com câmeras em funcionamento constante para registro das ações."
Um dos meios que receberam destaque como forma de combater uma dessas mazelas nos últimos anos, mais especificamente a violência e a perseguição policial – que será tratada com enfoque maior mais a frente – foi a proposição do uso das câmeras corporais por forças policiais. Tal medida teria como objetivo registrar o áudio e vídeo das abordagens com o intuito de “reduzir abusos por parte dos agentes de segurança pública, promover maior transparência das ações policiais, além de contribuir na apuração de crimes, inclusive nos casos de falsas imputações aos agentes de segurança” segundo os defensores da política. Em última previsão, constatou-se que, estatisticamente, o uso das câmeras efetivado por programas em regiões ou ocasiões específicas diminuiu o uso da força significativamente, visualiza-se como exemplo o resultado da medida no Estado de Santa Catarina: “As câmeras individuais passaram a fazer parte do uniforme da PM catarinense, registrando as abordagens e armazenando tais registros para possível uso em inquéritos policiais e processos judiciais.
Dados de 2021 demonstram que houve uma redução de 61,2% do uso de força (física, letal ou não letal) pela PM de Santa Catarina após o uso das câmeras corporais”. A eficácia de tal meio de resolução da violência policial demonstrou-se significativa, mas mesmo que seja financeiramente viável apoiar tal projeto, a medida é capaz de solucionar as outras mazelas relativas ao crime?
Para responder tal questão necessita-se estudar a realidade criminal brasileira, esta engloba tópicos muito complexos, que vão além da violência policial e encontram-se intrínsecos a meios externos, como raízes culturais, história e preconceitos. Por mais que as câmeras minem, muitas das vezes, os comportamentos envolvendo a força física dos policiais, seriam elas capazes de minar a perseguição? A resposta é não, pois, por mais que a transparência do ato policial desencadeada pelas câmeras gere a possibilidade do julgamento de seu comportamento, a rotulação de delinquentes está engendrada na raiz da sociedade: estabelecem-se estereótipos. As instituições agem seguindo um padrão inconsciente vinculado à rotulação, o que teoricamente recebeu o nome, pela criminologia crítica de etiquetamento criminal.
O etiquetamento por si só não parece ser tão passível de problematização, porém possui severas consequências para a tutela do bem jurídico penal. A etiqueta, seria o próprio rótulo, o estigma que marca o delinquente para sempre, mesmo que haja o legítimo cumprimento de pena, sua imagem não se desvincula da de criminoso. Tal estigma não se baseia apenas naquele que cometeu o crime, mas também naquele que a própria sociedade enxerga como passível de delinquir. Nesse ponto, entra em jogo o preconceito, a segregação e o fator psíquico para julgar o indivíduo mesmo que este não tenha realizado a conduta típica. Segue-se, portanto o teorema de Thomas: “If men define situations as real, they are real in their consequences” (DIAS, 1981, p. 154), a imagem estigmatizada faz com que se consagre na cabeça do indivíduo preconceituoso (o que compreende a grande maioria da sociedade e das instituições) a imagem de um infrator. Por esse motivo, a classe social e a cor tornaram-se fatores totalmente relevantes para a ação policial e das instituições do crime; como consequência, o cárcere permeia-se de pessoas alvejadas, enquanto em segundo plano correm as chamadas “cifras negras”, os crimes sem destaque por não serem permeados por agentes “etiquetados”.
"O Massacre do Carandiru foi uma chacina que ocorreu no Brasil, em 2 de outubro de 1992, quando uma intervenção da Polícia Militar do Estado de São Paulo, para conter uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), causou a morte de 111 detentos."
Além da perseguição, por conta do cerimonialismo presente na instituição da pena do alarde dado aos crimes cometidos pelos rotulados - a mídia torna-se em grande parte desfavorável à população carcerária, portanto a própria sociedade não pretende que haja uma melhora considerável na qualidade de vida nas prisões. O que se preza pela sociedade é a punição dos etiquetados que cometem os crimes, por mais que tal premissa fuja do entendimento axiológico do Direito Penal brasileiro, que tem como base a Teoria da Prevenção Especial Positiva:
A teoria da prevenção especial teria três objetivos:
(i) a segurança da sociedade através do encarceramento do delinquente, (ii) a intimidação do delinquente através da pena para que não cometa futuros crimes e (iii) por fim preservando-o da reincidência através da correição (ROXIM, 1997).
Vale ressaltar que, por mais que fosse ressocializado o delinquente (o que o cárcere não chega perto de fazer), sua etiqueta pesaria de modo que a sociedade ainda o consideraria um infrator. Após o mencionado, constata-se que a maioria das questões envolvendo o tratamento aos criminosos possui ligação direta com o fenômeno do etiquetamento. Por esse motivo, a inserção de câmeras no traje policial – por mais que ajude a minar a violência física e muitas vezes a moral – não possui impacto significativo nos fatores vinculados à perseguição, à inconstitucionalidade da vivência no cárcere, ao cerimonialismo, às cifras negras, entre outros diversos fatores que moldam a triste realidade criminal brasileira.
O labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sustenta que é mais fácil ser tido como criminoso pelo que se é do que pelo que se faz. Dessa forma o critério de seleção para apenas algumas práticas ilícitas virarem processos judiciais, é o índice de marginalização do sujeito, o número de estigmas carrega, ainda que não sejam de natureza criminal. Assim sendo, o sistema penal não teria a função de combater o crime, mas a de atribuir rótulos de criminosos aos já marginalizados.
Nessa perspectiva, torna-se visível a necessidade de combater o fenômeno do etiquetamento criminal, uma mazela decorrente de ideologias conservadoras extremamente problemáticas, com raízes em ordens psíquicas que, além de irem nitidamente contra princípios constitucionais, estão vinculadas a tradições preconceituosas enraizadas no meio social. Portanto, é necessário que haja efeitos tanto no ensino de base - que é, a meu ver o único meio de combater ideais preconceituosos estigmatizados além da própria criação familiar (na qual as instituições não possuem controle); quanto nas notícias apresentadas – que em sua maioria desfavorecem o encarcerado, sem que seja mostrada sua realidade e suas capacitações. Nesse sentido, propõe-se: a adoção pelas escolas de um enfoque maior nas raízes históricas do preconceito e do crime; a aderência de um trabalho positivo pela mídia, que seja capaz de mostrar a realidade encontrada nos presídios - as famosas “escolas do crime” - assim como entrevistar individualmente os presidiários, dando destaque a sua história e aos fatos que o levaram a ser inserido no meio criminoso, de modo que seja visualizado pela população a humanidade do encarcerado, o que poderia favorecer a desvinculação de rótulos e, ao mesmo tempo, mudar a perspectiva dos indivíduos acerca da realidade carcerária. Tais medidas seriam capazes de exercer impactos significativos nos problemas vinculados ao etiquetamento e, ainda por cima, iriam favorecer outros aspectos sociais externos ao tema do próprio crime.
Sobre o autor:
Fernando Augusto Onofre de Souza
Fernando, 21 anos, é estudante do 4º período do curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Possui forte interesse pela área do direito penal e pelo estudo do sistema carcerário. Membro do Projeto Livre, no núcleo científico, agrega de forma significativa as pesquisas do projeto.
"O livre representa todo o meu anseio de formação na faculdade, por ser um grupo vinculado ao Direito Penal e debater especificamente o tema do sistema carcerário, que é o meu interesse principal em todo o período letivo. A visibilidade ao cárcere que o projeto traz é inspiradora, por ser um tema que necessita de resolução imediata - fato assumido pelo próprio STF, que confirmou a inconstitucionalidade do sistema carcerário brasileiro. ...pretendo acrescentar de forma bastante fundamentada nos debates, assim como pesquisar e buscar informações enriquecedoras a respeito do tema..."
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